A cada coluna, JP-Coutinho se torna melhor. Vejam seu artigo de 20 de maio último na Folha de São Paulo. Vale a pena!
Uma miss à minha porta
FORAM ANOS e anos e anos em busca das mulheres mais belas. Não fui caso único. E poderia dizer, como um escritor beat decadente, que vi as melhores mentes da minha geração destruídas por ruivas de olhos verdes e morenas de cabelo negro. Mas uma loira genuína com a pele pintada a ouro? À minha porta? Ah, isso não é justo. Nem real.
Tudo começou com uma oferta da senhoria. Eu, rapaz solteiro, com vida dissoluta, estaria interessado nos serviços de uma empregada doméstica três vezes por semana?
Contemplei as camisas por passar. Lembrei, com repulsa, a louça em forma de Everest na cozinha. Disse que sim. Sem entusiasmo. No dia seguinte, a empregada chegou. E antes de eu chegar a ela, um pouco de história, por favor.Leitores, o que aconteceu em 1991? Eu respondo: em 1991, a antiga União Soviética era sepultada. Ficaram apenas herdeiros festivos: russos, ucranianos, armênios, moldavos, lituanos. Uma salada. Os anos seguintes não foram fáceis: com o capitalismo à solta em solo virgem, as antigas repúblicas soviéticas caíram na inflação e na escassez e começaram a exportar gente para os quatro cantos da Europa.
Não falo apenas de gente pobre. Falo de gente que ficou pobre de um dia para o outro. Em qualquer cidade da Europa ocidental era possível encontrar advogados servindo em cafés ou antigos ministros trabalhando na construção civil. Cheguei a conhecer um médico moscovita que, depois da derrocada, era motoboy em Portugal.
Já tinha visto de tudo. Mas nunca vira uma antiga candidata a miss fazendo limpezas. Chama-se Emma e, na década de 90, ela concorria ao título ucraniano. Perdeu, não me perguntem como. Depois, a família não agüentou a crise, Emma partiu com a irmã para Madri e finalmente aterrou em Portugal. Aterrou em minha casa.
Era Proust, creio, quem dizia que as mulheres bonitas eram para homens sem imaginação. Se Proust estava certo, então eu sou uma pedra em forma humana. Não, ela não é bonita. Ela transforma a capela Sistina em grafite urbano. Ela reduz qualquer escultura de Rodin a um monte de sucata.
Os cabelos, longos, terminam onde começa um pescoço que faria as delícias de Bela Lugosi. Os olhos, de um azul como já não existe nos céus de Lisboa, sorriem mesmo quando ela não sorri. E, quando o sorriso acontece em lábios generosos e de um vermelho que dispensa qualquer pintura, o rosto ganha uma luz que pode levar qualquer homem à cegueira. O corpo é perfeito. Como sei? Pelos pés: pequenos, esguios, ligeiramente ruborizados. Ela trabalha descalça e gosta de caminhar como as bailarinas. Ou como os gatos. Silenciosa e nas pontas.
Começou no mês passado. Segundas, quartas e sextas. Achei melhor incluir também as terças. E as quintas. E depois o sábado. E o domingo. E o dobro do salário nos dias feriados. Oito horas por dia? Não. Doze. Na impossibilidade de serem 24. E nada de limpezas. Limpezas, princesa? Com essas mãos tão delicadas?
Eu limpo, ela existe. E amigos vários, incrédulos ao início, já começaram a fazer excursões à casa como certos peregrinos a lugares sagrados. Chegam, acampam. Alguns pedem para levar uma relíquia da santa: um fio de cabelo, uma unha, um dente. (Um dente?) Eu sou como um policial em filme de Hollywood, depois de selar o local do crime. "Dispersem, por favor. Não há nada para ver."
Mas há tudo para ver. Imagens do concurso de miss, que ela mostrou em fotos da época. Algumas canções ucranianas, que aprendo a balbuciar com a atenção cirúrgica de um aluno aplicado.
Troquei o uísque pela vodca. Experimentei arenque (que delícia! como foi possível acreditar que o bacalhau era o supremo peixe?). Também sou capaz de reproduzir os passos mais elementares de uma dança típica. E sem qualquer esforço, apesar das cãibras permanentes que me fazem gemer a noite toda. E já digo "bom dia", "boa tarde" e "boa noite" na língua retorcida dos nativos. Quando chegar a um nível mais profissional, resolvo tudo com um "casa comigo" e depois parto com ela para a lua-de-mel em Kiev.
Anos e anos e anos em busca das mulheres mais belas. Mas foi o fim do comunismo e a entrada arrasadora do capitalismo que trouxe uma miss à minha porta. E logo agora, que eu começava a ficar um pouquinho mais esquerdista.
Desculpem, camaradas. Mas, como diria o velho Karl, a cada um segundo suas necessidades.
Uma miss à minha porta
FORAM ANOS e anos e anos em busca das mulheres mais belas. Não fui caso único. E poderia dizer, como um escritor beat decadente, que vi as melhores mentes da minha geração destruídas por ruivas de olhos verdes e morenas de cabelo negro. Mas uma loira genuína com a pele pintada a ouro? À minha porta? Ah, isso não é justo. Nem real.
Tudo começou com uma oferta da senhoria. Eu, rapaz solteiro, com vida dissoluta, estaria interessado nos serviços de uma empregada doméstica três vezes por semana?
Contemplei as camisas por passar. Lembrei, com repulsa, a louça em forma de Everest na cozinha. Disse que sim. Sem entusiasmo. No dia seguinte, a empregada chegou. E antes de eu chegar a ela, um pouco de história, por favor.Leitores, o que aconteceu em 1991? Eu respondo: em 1991, a antiga União Soviética era sepultada. Ficaram apenas herdeiros festivos: russos, ucranianos, armênios, moldavos, lituanos. Uma salada. Os anos seguintes não foram fáceis: com o capitalismo à solta em solo virgem, as antigas repúblicas soviéticas caíram na inflação e na escassez e começaram a exportar gente para os quatro cantos da Europa.
Não falo apenas de gente pobre. Falo de gente que ficou pobre de um dia para o outro. Em qualquer cidade da Europa ocidental era possível encontrar advogados servindo em cafés ou antigos ministros trabalhando na construção civil. Cheguei a conhecer um médico moscovita que, depois da derrocada, era motoboy em Portugal.
Já tinha visto de tudo. Mas nunca vira uma antiga candidata a miss fazendo limpezas. Chama-se Emma e, na década de 90, ela concorria ao título ucraniano. Perdeu, não me perguntem como. Depois, a família não agüentou a crise, Emma partiu com a irmã para Madri e finalmente aterrou em Portugal. Aterrou em minha casa.
Era Proust, creio, quem dizia que as mulheres bonitas eram para homens sem imaginação. Se Proust estava certo, então eu sou uma pedra em forma humana. Não, ela não é bonita. Ela transforma a capela Sistina em grafite urbano. Ela reduz qualquer escultura de Rodin a um monte de sucata.
Os cabelos, longos, terminam onde começa um pescoço que faria as delícias de Bela Lugosi. Os olhos, de um azul como já não existe nos céus de Lisboa, sorriem mesmo quando ela não sorri. E, quando o sorriso acontece em lábios generosos e de um vermelho que dispensa qualquer pintura, o rosto ganha uma luz que pode levar qualquer homem à cegueira. O corpo é perfeito. Como sei? Pelos pés: pequenos, esguios, ligeiramente ruborizados. Ela trabalha descalça e gosta de caminhar como as bailarinas. Ou como os gatos. Silenciosa e nas pontas.
Começou no mês passado. Segundas, quartas e sextas. Achei melhor incluir também as terças. E as quintas. E depois o sábado. E o domingo. E o dobro do salário nos dias feriados. Oito horas por dia? Não. Doze. Na impossibilidade de serem 24. E nada de limpezas. Limpezas, princesa? Com essas mãos tão delicadas?
Eu limpo, ela existe. E amigos vários, incrédulos ao início, já começaram a fazer excursões à casa como certos peregrinos a lugares sagrados. Chegam, acampam. Alguns pedem para levar uma relíquia da santa: um fio de cabelo, uma unha, um dente. (Um dente?) Eu sou como um policial em filme de Hollywood, depois de selar o local do crime. "Dispersem, por favor. Não há nada para ver."
Mas há tudo para ver. Imagens do concurso de miss, que ela mostrou em fotos da época. Algumas canções ucranianas, que aprendo a balbuciar com a atenção cirúrgica de um aluno aplicado.
Troquei o uísque pela vodca. Experimentei arenque (que delícia! como foi possível acreditar que o bacalhau era o supremo peixe?). Também sou capaz de reproduzir os passos mais elementares de uma dança típica. E sem qualquer esforço, apesar das cãibras permanentes que me fazem gemer a noite toda. E já digo "bom dia", "boa tarde" e "boa noite" na língua retorcida dos nativos. Quando chegar a um nível mais profissional, resolvo tudo com um "casa comigo" e depois parto com ela para a lua-de-mel em Kiev.
Anos e anos e anos em busca das mulheres mais belas. Mas foi o fim do comunismo e a entrada arrasadora do capitalismo que trouxe uma miss à minha porta. E logo agora, que eu começava a ficar um pouquinho mais esquerdista.
Desculpem, camaradas. Mas, como diria o velho Karl, a cada um segundo suas necessidades.
Um comentário:
Muito bom! O que não faz uma "miss"...
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