Nos anos de 1950, a partir da Zona Sul do Rio, longe – geográfica mas não ritmicamente – da Praça Onze, do Estácio e dos morros, o cantor e violonista João Gilberto, alterando as harmonias com a introdução de acordes não convencionais, como antes já o faziam músicos como Garoto, Oscar Bellandi, Vadico, Valzinho etc; e radicalizando a sincopação do samba, com uma divisão única; João Gilberto começava a se tornar o papa de uma nova religião.
"João – e quem conta é o músico e cineasta Sérgio Ricardo – pegava o instrumento e mostrava sambas tradicionais com um acompanhamento diferente, intrigante, casando de uma forma nova com o solo de sua voz. Surpreendentemente diverso de tudo o que eu já ouvira em matéria de samba (...) seu violão era seguríssimo, preciso, simples, sem floreios ou escalas. Só os acordes batidos no momento certo, na beleza do inesperado, num balanço inimitável”.
Curioso é que toda essa revolução joão-gilbertiana era feita basicamente em cima de sambas absolutamente tradicionais, como, entre outros, De Conversa em Conversa (Ari Barroso), Isaura (Herivelto Martins e Roberto Roberti), Falsa Baiana (Geraldo Pereira) e O Pato (Jaime Silva e Neuza Teixeira), escolhidos por ele, em geral, por serem balançados, sincopados, permitindo o exercício de toda a sua criatividade rítmica. Ao redor e a partir de João Gilberto reuniu-se um grupo de músicos, quase todos de classe média alta e formação universitária, com o intuito de, partindo das experiências formais de João Gilberto tentar “simplificar” o samba tradicional e adequá-lo a certos padrões internacionalizantes.
Dentro dessa idéia, de fazer um samba moderno, sem pandeiro nem cavaquinho, Tom Jobim,músico de formação erudita, ex-estudante de arquitetura e morador em Ipanema desde a infância, teorizava, segundo um texto de Gene Lees, publicado na Hifi/Stereo Review, em 1963: “O autêntico samba negro é muito primitivo. Nele usam-se, às vezes, dez instrumentos de percussão e quatro ou cinco cantores. Ele é cantado alto e a música, maravilhosa, é sempre muito animada. Já a Bossa Nova é calma e contida. Ela conta uma história, tentando ser simples, séria e lírica ... João (Gilberto) e eu achamos que a música brasileira até agora tem sido uma tempestade no mar e, assim, queremos torná-la tranqüila para que ela possa entrar nos estúdios de gravação. Pode-se dizer que a bossa-nova é o samba limpo, depurado. Mas nós não queremos perder o que há de importante nele. E aí o problema é saber compor sem perder o balanço."
Esse afã de simplificar e suavizar o negro samba gerou identificação com uma proposta de lazer e descompromisso, com letras sorridentes, douradas pelo sol e pelo sal das praias da Zona Sul. E, contraditoriamente, deu também origem ao personalíssimo som então Jorge Ben, hoje Benjor, provável mistura de samba com rhythim & blues.
Mas o alegre barquinho da bossa nova era atropelado pelo golpe militar de 1964 e pela nova ordem político-econômica consolidada a partir de dezembro de 1968. Nesse interregno, então, os seguidores de João Gilberto se dividiam, como explica este trecho de Flávio Eduardo de Macedo Soares, publicado na Revista Civilização Brasileira, em maio de 1966: “A contradição inicial dentro da bossa nova assumiu em pouco tempo o aspecto de uma verdadeira diáspora. Em termos gerais, pode-se dizer que uma facção optou por manter a influência do jazz norte-americano, um tom suave, intimista (personificado na voz fanhosa de João Gilberto) e nas letras de temas amenos, sem maior compromisso com a realidade brasileira ou qualquer espécie de participação social. A outra, constituída por gente como os compositores Baden Powell, Sérgio Ricardo e Carlos Lyra e os letristas Vinícius de Moraes e Nelson Lins e Barros, uniu-se ao movimento geral da cultura brasileira no sentido de uma base popular-folclórica nas músicas, e uma temática de realismo e participação social nas letras”.
Esse rompimento com a estética do Barquinho que já se delineara em sambas como Zelão (Sérgio Ricardo, 1961), O Morro e Feio Não é Bonito (Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri, 1963) e O Morro Não Tem Vez (Tom e Vinícius, 1963), entre outros, vai estabelecer ou reestabelecer um elo importante entre o samba da classe média, a bossa nova, e o samba das camadas populares, “do morro”. É através desse elo que Cartola, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti, entre outros compositores que, embora desfrutando de grande prestígio no mundo do samba, já se tinham como definitivamente alijados do mercado musical, puderam enfim – a afirmação é do já citado Macedo Soares – dialogar com um público, jovem e universitário, que até então só tinha acesso à música composta pelos artistas de sua classe social.
No mesmo contexto do ressurgimento de Cartola e Nelson Cavaquinho, o samba vê surgir o talento de Paulinho da Viola. E é também em meados da década de 60 que emerge, no cenário artístico, como um sucessor de Noel Rosa ou de Ismael Silva, o pós-bossanovista Chico Buarque, autor de sambas também antológicos.
Entretanto, 50 anos depois do Chega de Saudade, é importante que se questione o seguinte: quando a bossa nova (estilo de compor e interpretar e não gênero musical) resolveu simplificar a complexa polirritmia do samba e restringir sua percussão ao estritamente necessário, não estaria embutido nesse gesto tido apenas como estético, uma intenção desafricanizadora? E essa intenção não se originaria no preconceito, até hoje persistente, segundo o qual o samba cheira a senzala, a coisa velha e incompatível com a modernidade?
(Texto extraído e adaptado do livro Sambeabá e do Blog Meu Lote do sambista, compositor e escritor Nei Lopes)